quinta-feira, 21 de junho de 2012

sobre meu mundo caricato, torto e lindo





Hoje eu sorri pela primeira vez para a menina do brechó. Ela sorriu em simultâneo enquanto abríamos os cadeados, ela de lá, eu de cá, a comecinho de expediente. A papelaria vizinha já a mil, tão estaticamente a mil. A vendedora sentada em meio a pilhas de papel chamex, durex e porta-docs exibia seus olhos fundos das seis da manhã. Eram nove e um pouquinho, meus olhos eram das oito e filmavam curiosos.

Os secadores de cabelo sopravam graves, as tesouras e línguas afiadas das cabeleireiras salpicavam em murmúrios incessantes. Era dia de quinta-feira e o centro de diversões sul, banhado de sol, mostrava suas entranhas, enxugando e secando as lágrimas, os detritos e os segredos da noite anterior.

Almodóvar, eu diria. A menina da loja de roupas usadas veio de um filme de Almodóvar. Habita o rosto, as roupas e a postura uma expressão distinta, coisa de louco, ator louco, diretor louco, gente louca criativa que vê beleza nos traços mais curiosos. Acontece que! ela era real, a par da velhice das roupas e da desordem dos produtos empilhados da papelaria. Acontece que criatividade não era de enredo, ou cênica, era simples da combinação gênica do pai e da mãe que desaguou naqueles olhos cerrados por pálpebras enormes. E naquele queixo quase ausente. Minha porta que a enquadra do outro lado do corredor, atrás de mais um balcão é somente e bastante uma porta. Não é tela, nem pixel, tampouco anteparo. E as roupas nas araras, verossímeis. E o cansaço do trabalho estampado em olheiras, à prova d'água.

Nem meu olhos, nem meu encanto eram película e trilha sonora. Ou fotografia, o agudo obtuso do meu ponto de vista enquadrado nos ares caricatos daquele comércio.

Tudo tão tão tão puro e somente real que merecia filme. Aquele centro. As entranhas das cidades. Centro de diversões! Diversões, vá dizer!, dessas que ninguém quer ver. Que reviram os olhos. Que polemizam na TV. Das que extrapolam pudores, das que todo mundo guarda em instinto. Diversões. Tortas e bastante tristemente, mazeladas; Se formam no tempo e no absurdo descontrolado de tudo que é urbano, humano; De tudo que prolifera, que amarela e adoece. Que tem cheiro de gente, que tem saliva e língua e fome. De tudo que se perde o controle. De tudo que contrasta e sobrevive. Só mais uma face de tudo que, economica e politicamente não importa pros grandes marioneteiros das gentes, esses inescrupulosos.



A beleza que vi era isso tudo que não tem jeito. Era a desordem natural das coisas. Sempre em algum canto e aresta de mundo enquanto houver mundo e enquanto houver gente. Isso que tem a luz de tudo que é real e torto quando orgânico, esbugalhado quando olhar, esguio quando agudo, e triste quanto pode. Faminto quando vazio, sedento quando ausente e assimétrico quando sempre.


Tudo que tem a luz de existir
luz linda e apressada louca luz de existir

domingo, 3 de junho de 2012

amar muito, se

"
Eu poderia amar aquele homem. Amar muito.

Era assim toda vez que o via. Bastava que ele chegasse e fizesse o que tivesse que fazer, logo flagrava a mim mesma fotografando todos os seus trejeitos e dicções. Repetindo, em silêncio, a imensidão do amor que eu poderia jurá-lo.

Momentos depois, no vislumbre de seus retratos da mocidade; no revelar de seus ideais, de suas poesias e de seus gostos; de seus gestos e desgostos que a vida projetara. Depois de tanto, depois de tudo, ele ainda me permitia vê-lo ali, de pé, sem dar-se conta ao menos da concessão de sua presença que apenas eu, agradecida, valorava como ninguém - imersa em meu amor potencial.

Já não tão atraente esse homem, veja bem. Ser orgânico é ser temporal. E eu poderia amá-lo muito, e mais, por isso. 

Principalmente, vos digo, o amaria pelo broche que carrega no peito. Por todos os livros que ele lera. Pelos versos que sei que ele esboça muito bem. E pela barba volumosa, e pela irreverência. 

Pelo entrar por aquela porta, pelas líricas intersecções,

falo sério, e com fervor,

eu poderia muito amar aquele homem.
"
e olhou pros próprios lábios como se fossem os primeiros
ou últimos.
esticou-os, sorriu, lambeu-os:
o quão molengas podem ser? quão orgânicos?
e beijáveis? desejou alguém que os desejasse.