Esse texto me veio de uma forma inusitada e curiosa. E todas as repercursões deste nos dias que seguiram à noite em que ele submergiu do insciente e brincou comigo foram igualmente curiosas. Ou melhor, e mais, audaciosas.
Era dia de buscar
a irmã mais velha na escola, tardeando dourado. Sexta-feira. Ritual tanto quanto
rotineiro o fato de a mãe a requisitar para isso. Saiu, então, em busca da irmã enquanto
a mãe esperava na portaria. Ela adorava, aventurava-se, desbravava a arquitetura
improvisada daquele lugar, cheio de rampas, escadas e paredes inusitadas...
seguia. Corria. Forjava contos de fadas.
Durante seu
trajeto viu portas de uma das salas entreabertas, portas duplas,
luzes acesas. Portas verdes de metal cujas clarabóias delineavam
circunferências que sempre lhe causaram curiosidade, pareciam pertencer a
grandes portais ou paredes de um submarino. Foi até a abertura e espiou para
dentro da sala. As carteiras pareciam ter sido achatadas nos degraus, estes que
compunham a arquitetura não tão funcional do lugar em forma de arena. Quase a
adentrar o recinto, advinhou a silhueta de uma pessoa sozinha dentro da sala.
Era um homem de pé em frente ao quadro; fitava-o pensativo, concentrado. Homem cujos
ares e trajes intelectuais remetiam a um professor. E, no presente contexto,
era até meio óbvio, mesmo para uma garotinha. Eles perceberam um ao outro, por
fim. Ela tinha uns seis anos, ele, quase quarenta.
Ele se dirigiu, solene, movendo somente a cabeça.
Respondeu, tímida. Educada, ainda.
Ela se aproximou,
queria ver o que ele fazia naquele quadro brilhante e luminoso - sua
curiosidade a movia quase sem escrúpulos, era sincera. Era criança. - Tinham planetas desenhados, embora não muito reais. Ela reconheceu o que esboçava um
sistema solar, e tinha certeza, pois tinha visto na TV.
Fez que sim com a
cabeça e meio sorriso nos lábios. Olhos sempre atenciosos, era assim que se
dirigiam a terceiros: quase sempre muito atenciosos. Embora, diziam por aí, não
fosse muito chegado em crianças.
A garota olhou pro
quadro:
- Você da aula de
universo?
Ele achou graça,
'de universo'? e, de lábios ainda meio esticados:
- Sim, às vezes
ensino coisas sobre o universo.
A menina se
aproximou ainda mais, o encarou e percebeu curiosos óculos que pareciam de
brinquedo: tinham lentes amareladas. Se precipitou, oscilando cautelosa sobre suas pequenas pernas:
A curiosidade
pura, quando condensa, é difícil de freiar: impossível negá-la o prazer da
descoberta.
Por isso, o
professor despiu-os.
- Cuidado,
hein!? - Advertiu, projetando-se
gentilmente. Eram preciosos, pois, aquele par de lentes. Tornavam o mundo
possível, nítido, que é como a realidade cotidiana e funcional demanda ser
vista.
Ela os posicionou
na altura dos olhos, ansiosa pelo que revelariam. Sentiu uma pontada de
desconforto por detrás da divergência deles; eram janelas imponentes, fortes e
precisas. E brincou um pouco com a luz que por ali passava, quase a esquecer-se
da presença do professor.
- Parece...
parece quando a gente olha através do vidro do carro quando chove e faz sol ao
mesmo tempo.... mas... mas, cadê os pingos de chuva?... - Sussurava pra si,
brincando com a própria imaginação em devaneio criativo.
Ele não entendeu,
mas intrigou-se ainda mais. Ela, por sua vez, parou de falar quando se deparou
com o olhar nu do professor fitá-la à espera. Era um grande homem aquele se que
postava próximo dela, embora ela desconhecesse esses valores e atribuições. O
professor tinha voz altiva, bonita, a dicção limpa e uma oratória de dar inveja
em muitos pseudo-lobbistas ou políticos. Era adorado por uma imensa maioria de
seus alunos. Toda vez que se postava de frente a uma turma de pré-vestibulandos
famintos, arrebatava dois ou três corações. Por vez! Bastava que desatasse a
falar, ensinar aquilo que sabia Muito, sabia Bem e, o mais interessante, aquilo
que ensinava como poucos. Proporcionava conhecimento & entendimento claros,
tudo numa tacada só. Brilhante. Enfim, de qualquer forma, pouco importava,
aquele profissional a menina não conhecia. O que desfrutou foi a confiança que
sentia na companhia dele, e era inegável. Havia algo, algo profundo. Escondido. Para ela,
tudo beirava o fascínio, tudo era pretexto para descobertas. Ainda era coringa no mundo, e ele tinha fendas nos
lábios que lhe esboçavam sorriso de um. Foi quando, com os óculos dele ainda em
mãos, se deparou com o par de olhos que, mais afundo, no demorar do olhar, se
revelavam, isentos das vestes; onde algo sobre ele próprio também o fazia. Eram
olhos tanto quanto fatigados, nitidamente sensíveis. Pareciam cansados,
doentes, frágeis. Detentos de uma delicadeza orgânica e bela. Era isso. Que é
que tanto leram? Será que foi de tanto olhar para as estrelas? Por eles tantas
coisas devem ter perpassado... Que a aconteceu a esse par de retinas? E,
naquele momento, pareciam chover em si, para dentro de si. Ela achou graça,
estavam aguados.
- Parece que tá
chovendo aí dentro. - Apontou-os.
Ele entendeu a
direção dos dedinhos da criança e contraiu as pálpebras. Se por impulso reativo
à afirmação da garotinha ou sabe-lá-o-que, atou-os. Versou-os na metáfora
imperfeita na qual acabavam de ser enquadrados e sentiu-se abstrato e ilógico
uma vez depois de muito tempo. A Física fez-se mais contemporânea e quântica
que horas antes, diante de uma plateia infinitamente menor do que havia se
acostumado. Diante de um vislumbrar de si muito mais profundo, deixava que os
pilares do ego se dissolvessem num ato de delicadeza e auto-conhecimento. Num
ato de cansaço. A tempestade desatou em transbordar olhos afora, não era choro
nem pranto, era a alma, viva. Muito natural, para ele, que a presença de seus globos
oculares se fizesse sentir. Foram, desde muito, uma parte do corpo da qual se lembrava
todas as manhãs; um par de órgãos tanto quanto pesados em sua existência. Ali,
latejavam cada vez mais, vivos, fortes e
leves, porém. Leves diante daquele ser curioso que postava-se puro, atento, que
presenciava algo que pouco compreendia. - Não sabia mais se era a menina ou
alguma parte de si mesmo a quem se referia, a quem chamava de 'ser'. Não
importava muito, veja bem.
- Professor?
Prof... ? - Doce, a incompreensão do que ocorria causava na menina preocupação
e cautela. Por que ele tava a tanto tempo de olhos fechados?
Silencioso...? Pigarreou para que ele
despertasse. Estendeu delicadamente as lentes em direção às mãos dele, que
estendeu solene as suas, em resposta à devolução. A garota sorriu. Ufa, pensou,
não ficou chateado comigo por ter pegado os óculos dele e falado da chuva
ou....
- Professor? - A
curiosidade lhe arrematava novamente. - Posso fazer uma pergunta?
- Claro, diga. -
Sorriu de novo. In
- É que... é que
eu queria saber, se... chove no universo, professor?
Se chove no
universo? Ele repetiu com seus botões. Água? Impossível... ! Condensação de
água na ausência da via láctea.. impossível... meteoritos, talvez... Mas,
chuva? Chuva terrena? H2O... Algo nele impediu-o de dizer isto, porém. E o
impulsionou numa direção inusitada:
- Sim, há chuva no
universo... E sabe por que?
Ela respondeu com os olhos, que davam passagem
para que ele continuasse. Ele ajoelhou-se diante dela. Seus olhares se
encontravam numa mesma linha de horizonte. E, na dicção didática de sempre,
falou:
- Lá chove muito
de vezenquando, desatam temporais. Que é para limpar os corpos celestes, pois
assim eles se mantém leves e suspensos.
O professor
pensou na gravidade... corpo, massa, atração; era por isso que se mantinham
"suspensos". Não tinha nada a ver com limpeza, leveza ou chuva!
Pensou noutra gravidade: a da mentira que havia acabado de revelar. Por que
diabos tinha dito aquilo??? Um palpitar mudou o curso de seus pensamentos
novamente: Mentira? Equívoco? Imaginação? Certamente alguém um dia iria ensinar
àquela menina “a verdade”. Um dia, quando fosse tempo para isso. Quem sabe ela
mesma não comporia uma de suas cheias classes pré-vestibulandas, e estudaria
sobre o modo cartesiano de ver muitas das coisas? De qualquer forma, esse dia
não era aquele. Não agora. Nem ele, por minutos, nem ele mais faria do próprio
tempo presente o momento em que veria as coisas lineares e, por mais um lapso,
quis e, quase 'de fato', acreditou no que tinha acabado de dizer. Por todos os
anos de estudo, por todo conhecimento e genialidade, por toda didática e
dialética, desconstruiu-se permitindo-se o equívoco do erro. Ou melhor, da
imaginação. Forjou-se leveza, ingenuidade. Fascinado, pois. Sentiu fascínio
pela pergunta criativa da menina, sincera e despretensiosoa: pelo imenso
lirismo que cabia nela. Sabia muita coisa relacionada aos registros e estudos
científicos sobre o universo. Não obstante, compartilhou sua mais nova teoria
acerca de uma suposta chuva na via láctea... Que loucura! Ria consigo na
consciência da volatilidade daquele momento. Olhou pras pantufas e quis
desfazer-se delas também - só um pouquinho.
Quis despir-se em alma. Resgatar
algo do qual pouco se deixava ser de tanto vestir um personagem. Este
forjado não apenas como forma de entretenimento de terceiros, mas de carisma e
auto-proteção. Tirou os óculos novamente. Sem o filtro destes, o mundo disforme
pareceu mais natural e confortável. A abstração do que via o remetia a
sensações antigas, puras. De algum jeito... de alguma forma... aquilo tudo....
a ingenuidade, o resgate, a saudade, o despertar, a novidade... o mundo, e
também, o amor. O universo numa casca de nóz. Sentiu-se a própria casca, em
expansão, em ausência, em vazio, todo composto por corpos brilhantes, por
energia, luz, relatividade, gravidade e, acima de tudo, temporais. Em algum
lugar, encharcado da tempestade que se revelava através dos olhos míopes, um
buraco negro não deixava escapar nada que ousasse passar por perto. Nada que
não possuísse a crueza e a 'leveza insustentável de Ser'. 'Ser' isento de cultura,
de valores e de tempo. A crua casca dilatava-se, rasgando todas as camadas de
pele e representatividades. E chovia. Choviam dilúvios. Em algum lugar, de
algum jeito, de alguma forma não cartesiana, não catalogada, mestrada ou
diagnosticada, em algum ponto anti-principal de si, algo se essencial se diluía
e desconstruía em temporais.
- Às vezes.... sim,
repetiu em silêncio,
às vezes chove no universo.